Domingo, quase dez da noite, entro no Chirashi Ramen de Telheiras.
[Podia ser o início de um conto policial, mas é só uma crónica alimentar. Não se excitem]
O Chirashi é uma marca com três lojas. E cheira a restaurante que quer ser franchising.
Lá dentro, um corredor apertado de mesas vazias, tudo limpo e despido, nem sequer a falsa opolência das estreias. Mesas fajutas. Cadeiras fajutas. E ramen. A sopa de noodles japonesa.
“Ainda servem?”, perguntei, preparado para o desastre. “Claro que sim”, respondeu-me um homem, olho claro. Na jaqueta, lia-se: Miguel Bértolo.
Em matéria de cozinha japonesa, os chefs portugueses têm sido largamente desconsiderados. Com excepção de Paulo Morais (Kanazawa), Ricardo Komori (ex-Bonsai, agora no Japão) e de Pedro Almeida (Midori), poucos lograram entrar no topo das preferências.
Há no entanto um nome que faz o seu caminho, embora não um caminho óbvio.
Miguel Bértolo é mais conhecido por ser formador de sushi, na Associação Cozinheiros Profissionais de Portugal. E por ser vice-campeão num concurso mundial, o World Sushi Cup Japan. O título está por todo o lado onde Bértolo está, como um reclamo de Shinjuku, seja em diplomas, seja no site profissional, seja na roupa .
Desconfio de concursos de seja o que for, mas a verdade é que o dito existe e tem pergaminhos e Miguel preparou-se. Em 2017 foi lá intrometer-se entre os asiáticos e apurou-se para a final, o que é obra.
De resto, a presença de Bértolo começou por me chamar a atenção no Jncquoi Asia — onde colaborou como consultor.
É muito bom o sushi do Jncquoi Asia.
Enfim, mas para confundir as coisas, depois da passagem por restaurantes que terminaram sem glória, Bértolo decidiu meter-se num projecto de restauração em nome próprio, em 2016.
Que projecto? O tal Chirashi. Uma loja de sushi despachada, tigre do take away antes do take away ser tigre (pré-Covid), uma coisa que podia estar em qualquer food court de centro comercial.
Ora, foi com este contexto e esta biografia que, aqui há dias, o meu amigo André Freitas, um dos maiores especialistas em sushi do bairro de Telheiras e arredores, praticante de ramen caseiro e de violão, anunciou a novidade. O Chirashi ia abrir uma loja só de ramen. Telheiras ia ter um ramen. Bértolo ia ter um ramen.
Desconfiei. Soberba feia. O costume.
Mas, ontem, perdido e só, dei um salto ao Chirashi Telheiras.
Quando cheguei estavam lá dentro apenas três pessoas, todas do outro lado do balcão.
Foi Miguel Bértolo quem tomou a iniciativa de explicar os ramens. Há meia-dúzia de opções, dos tradicionais japoneses a outro com kimchi (fermentado coreano de couve e chiles) ou a um aportuguesado, aromatizado com coentros.
Bértolo explicou que ainda não têm tontoksu, a minha preferida, mas que quer ter. O tontoksu é o mais exigente dos ramens, quer no que respeita à confecção, quer — aparentemente — à aceitação do público. “A cozinha portuguesa tem poucos caldos à base de porco”, justificou.
A escolha acabou por recair no clássico shoyu.
Notas da prova. Barriga de porco assada (chashu) a desfazer-se na boca. Noodles comerciais mas bem cozinhados, elásticos e firmes (“estamos a fazer testes para os fazer cá”). O ovo cozinhado no ponto. E o mais importante de tudo: um caldo a ferver, sério, elegante mas cheio de nuances, marinho e animal. Faltaram só coberturas, ceboleto ou bambu (menma), pelo menos.
Por 11,50€, este shoyu do Chirashi tem mesmo assim uma relação qualidade-preço difícil de superar. Não conheço melhor em toda a nação.
Poderá ainda não ser desta que Bértolo subirá na lista dos foodies da praça. Mas ganhou um cliente.
Vão lá sorver e digam coisas.
Paulo Morais não entra na lista?
Tem razão. Entra sim. Vou acrescentar. Obrigado