Do mercado Novidade

Da histeria ao esparregado de favas. Um luxo do corona.

O corona tirou-nos a comida dos supermercados mas trouxe-nos mais tempo para cozinhar esparregado de favas. Nem tudo é mau.

Segurei o pânico covideiro até ao papel higiénico ficar no cartão. Na fruteira já só a maçã bichada, no congelador o rabo da maruca. Não dava mais. Era mesmo preciso ir ao supermercado. 

Perdi algum tempo a pensar que loja escolher. Lembrei-me de que o Continente tem mais caixas do que o Pingo Doce; e de que o Mini-Preço, parecendo sempre um armário de adolescentes depois do jogo do quarto-escuro, devia agora estar a saque. 

No final, foi como no futebol. Ganhou a Alemanha. Lidl seria. Se há gente habituada a situações de guerra e invasões são os alemães. 

Escolhi um Lidl específico. Um Lidl que eu cá sei. Um Lidl onde só se vai de carro, para os lados do Parque das Nações. Um Lidl grande e exemplar, bem arrumado, com uma razoável secção de produtos biológicos.

Um Lidl impotente, todavia.

À chegada, o cenário era desolador. Parecia a Normandia à passagem dos Aliados. Desde 6 de Junho de 1944 que os germânicos não viam uma humilhação assim. Parecia que a cavalaria montada tinha passado por ali. Do staff, só dois seguranças a segurar coisa nenhuma. 

Nos biológicos, café e doce de maçã. Na comida pronta-a-comer, uma rodela de pizza de fiambre. Nas frutas e legumes, dois quivis amachucados e uma curgete retorcida. Nos peixes e mariscos, restavam um camarão sem cabeça e outro sem rabo. Nas carnes, nem uma costeleta para amostra. A um canto, escondido, só um cachaço de porco.

Fui directo para a fila com o meu cachaço. Era um fila extensa. Não que houvesse muita gente. Mas a rapariga da caixa desinfectava o terminal de multibanco a cada cliente e depois ainda se desinfectava a ela. Tomava banho no frasco de gel e, altruísta, perguntava aos clientes se queriam tomar banho com ela. Alguns clientes queriam e estavam umas 50 pessoas na fila a assistir àquilo, pessoas estranhamente tranquilas e bem-dispostas a ver dois outros terráqueos risonhos a esfregarem-se até aos cotovelos como crianças na banheira a brincar aos patinhos. 

O episódio fez-me pensar que o corona aproxima. O corona conseguiu o que mais nada conseguiu. Clientes e técnicos de caixa de supermercado por todo o país fizeram as pazes por causa do corona. Décadas de verde-código-verde, de tem cartão e quer saco, de sim e não e obrigado. Décadas sem repararmos que atrás de unhas com estrelinhas e de tatuagens esborratadas estão seres humanos solidários, palavrosos e asseados. 

Munido do meu cachaço, faltava acompanhamento. Dirigi-me ao Mercado de Alvalade. Espantosamente, não havia prateleiras vazias aqui. Nem filas. Tudo normal no comércio tradicional. 

A banca da Teresa tinha uns robalos grandes, magníficos, já para não falar dos gorazes. E o casal onde me abasteço de frutas e legumes estava na máxima força, com as suas clementinas feias e dulcíssimas, mais cebolas com rama, batatas olho de perdiz e favas novas. 

“Agora é que elas estão boas!”, disse-me o vendedor, um homem com um bigode onde podiam crescer leguminosas. 

Estava certo, como sempre. 

Na manhã do dia seguinte, pus o petiz a abrir as vagens. De um lado, as favas, pequenas e húmidas. Do outro, as cascas. 

Percebi que as cascas eram tenras e percebi que teria tempo para as aproveitar numa receita antiga, de esparregado. Dadas as circunstâncias, era preciso aproveitar tudo.

Às favinhas, tirei só os olhos, cozi-as brevemente com uma boa quantidade de sal, escorri-as para uma tigela e, quando estavam mornas, juntei-lhes um golpe de vinagre, alho laminado, coentros picados e azeite virgem-extra do bom. Reservei no frio para comer ao jantar com peixe. 

Com as cascas, decidi fazer um esparregado inspirado numa receita antiga da Beira Baixa, a que juntei espargos verdes (apanhados na véspera, nos campos do Alentejo) e espinafres. 

Quanto ao cachaço, na verdade podemos atirá-lo para um forno a 200 graus e deixá-lo lá sem nada, servindo-o só com sal, duas gotas de limão e azeite cru. 

Sabemos que todos os cachaços de todos os seres vivos são cheios de gordura e saborosos — e mal precisamos de lhes mexer. Mas, por causa do corona, tive tempo para o temperar com um pozinho da Loja do Sal, em Rio Maior, feito de pimentão, louro, alho e, claro, sal de mina.  

Foi uma manhã inteira a cozinhar com os miúdos e a ouvir Chico Buarque. O almoço agradou a todos, sem excepção nem reparos. 

Coisa rara. Um luxo do corona.

4 comments on “Da histeria ao esparregado de favas. Um luxo do corona.

  1. Rui Jerónimo

    Bela crónica deste tempo único e das pequenas coisas que preenchem a vida!

  2. Luís Graça

    Favas óptimo e o esparregado também deve ser bom. Ricardo, que tal partilhar essa receita do dito cujo.
    Obrigado.

  3. Miguel

    A receita parece me simples… simplesmente perfeita para um preparo em família…mas o contar das pessoas que parecem mais próximas devido a uma complexa e ao mesmo tempo simples porcaria invisível é algo que verdadeiramente me enche a alma!
    Parabéns pelo texto!

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