Andava às compras pelo bairro de Alvalade, a abastecer-me para a noite de Natal, quando parei junto a uma caixa aberta de bacalhau, na montra da peixaria Sereia das Ondas. Era um bacalhau salgado seco, grande, bonito, mas o que me prendeu a atenção foi a etiqueta. “Origem: Inglaterra”.

Quando andei a pesquisar para o artigo sobre bacalhau que escrevi para o Expresso, em Dezembro, alguns especialistas no assunto haviam-me falado de um mítico bacalhau de cura inglesa, entretanto desaparecido. Foram os casos de Fernando Sá, do restaurante Julinha, na Trofa, mas também de Álvaro Gonçalves, outro dos homens que mais sabe do assunto, da extraordinária Taberna Afonso, em Poiares, Ponte de Lima.
Todos o citaram como se fosse o Tigre de Java, um bicho maravilhoso, extinto pela voragem da grande indústria e do progresso. Fernando Sá elogiou-lhe a goma e o empoado, umas pintinhas na pele muito características da cura inglesa. Álvaro Gonçalves lembrou o requinte e a exclusividade, a forma como vinha apresentado, numas caixas de madeira.
Não eram de madeira as caixas da peixaria de Alvalade, mas quando os meus olhos focaram a pequena etiqueta senti-me, por momentos, o Attenborough dos gadídeos. “Ei-lo. Ele vive. Em Alvalade. Ao lado de maruca do Chile e de arroz de pato congelado.”
Entrei na loja e fiz perguntas. A empregada da loja não estranhou, nem se agastou, antes ficou esfuziante. Sabia bem o valor do produto. “Este bacalhau é extraordinário”, atirou. “Vendemo-lo há muitos anos, por altura do Natal. Temos clientes que vêm cá de propósito para o comprar. É de um distribuidor do Porto”.

Olhando o bacalhau de perto, era evidente a qualidade. Mesmo estando já muito escolhidos, restava um espécime em forma de V apertado, gordíssimo no eixo. Comprei-o e deixei-o ainda mais umas semanas a curar dentro de um armário escuro. Quando fiz a demolha, viam-se bem as tais pintinhas pretas, porventura o empoado a que se referira Fernando Sá.
Ao fim de 72 horas afundado em água, no frigorífico, estava perfeito para ser cozido na panela. Primeiro deixei a água ferver, depois baixei para o número 6 da indução, até a água ficar parada. 10/15 minutos e ficou pronto. Na travessa, juntei-lhe couves, grão, ovo, e azeite bom de galega.
Não sem alguma emoção, dei a primeira garfada no rabo do dito. Era evidente a gordura, a cor distinta, escura, da carne, mas também o sabor forte. Mesmo junto à espinha, aparecia o ranho característico, que os miúdos acusaram. As postas soltavam lascas grossas, bem definidas, mas não essas lâminas moles dos bacalhaus de meia cura.
O bacalhau de Inglaterra foi, sem dúvida, o mais notável bacalhau que me lembro de ter provado em muitos anos. Não será para todos. Não será para quem não tem na memória este tipo de cura. Mas era magnífico, único, raro.
Dias depois, decidi procurar o autor do feito. Fiz uma busca na Internet pelo nome que estava na etiqueta da caixa e encontrei um telemóvel. Do outro lado, respondeu João Nuno Magalhães, a partir do Porto.

João Nuno Magalhães tinha lido o artigo do Expresso. “Vi, sim, tenho-o aqui à minha frente e tudo. Você é o autor? Olhe, até estava para vos escrever e aos senhores dos restaurantes que diziam que já não se encontrava o bacalhau de cura inglesa. Encontra-se, sim, eu sou o único distribuidor que o vende em Portugal”. A casa, hoje com outra designação, é herdeira do famoso armazenista portuense A. D. Oliveira Magalhães, que já usava deste bacalhau.
De acordo com Nuno Magalhães, o peixe vem de uma fábrica em Inglaterra, com quem o seu armazém tem acordo há mais de 30 anos. Hoje em dia, a produção é mínima e vai toda para ele, apenas uns de 600 quilos por ano. O bacalhau vem da Noruega e é pescado na época da desova, entre Janeiro e Março, quando se encontra mais gordo. Depois, é seco em túneis de ventilação e fica a curar durante pelo menos oito meses.
Sobre a técnica de cura, Nuno Magalhães, que já visitou a fábrica inglesa, não entra em detalhes, mas diz que é distinta da do cura amarela, que passa por uma reidratação em água doce. “Nem sequer tem essa cor”, atira.
O preço a que o comprei foi de 20 euros o quilo. Se forem directamente ao armazenista, ele vende por 16, 17 euros o quilo.
Em Lisboa, o bacalhau de cura inglesa só está à venda na peixaria Sereia das Ondas (21 840 3597). São os últimos exemplares do ano passado, mas não se preocupem que não se estragam. No Porto, podem encontrá-lo nas lindíssimas mercearias Casa Natal (22 205 2537) e Feira do Bacalhau (22 200 3087).
O fornecedor vende também ao público, basta ligar para o 91 007 7898 ou para o email geral@fernandescruzsilva.com.
Que bela poesia! Verdadeiro serviço público. Parabéns e obrigado!
Tenho para cima de setenta …. Sou do Porto , e ainda me lembro bem do bacalhau inglês que se comia lá em casa. SOBERBO!!!
Obrigado, caro Martinho Cruz. Era muito diferente do de agora?