Reportagem

Os 6 mandamentos do bitoque

Não conheço um carnívoro que não goste de bitoque. O bitoque é o porto seguro, a alternativa.

Em Portugal, temos muitos pratos tradicionais com pouco de original. O cozido, a feijoada, o leitão assado ou as tripas, por exemplo, existem um pouco por todo o mundo, com pequenas variações.

Bitoque, isso sim, nunca vi fora de Portugal.

No Chile e no Peru comem um prato parecido, chamado lomo a lo pobre, com bife, batatas fritas e ovo estrelado. Mas não leva o molho do bitoque. E sabemos que bitoque sem molho não é bitoque.

Esta popularidade parece, todavia, não colher junto das entidades gastronómicas. Iludidas com o bife maturado e com o Michelin, as entidades não vêem o alcance do bitoque.

Quando estava na Time Out, tentei promover um festival do bitoque.

Tinha tudo na cabeça: a lista das tascas; masterclasses de ovo estrelado; primeiro campeonato nacional de descascadores de batatas (feat. Dona Maria “Dedos de Aço”, do Alvorninho); a eleição do melhor bitoque de Lisboa; talhantes a cortar bifes de alcatra; a maior fritadeira de batatas do mundo (Guiness com ela); um cartaz bonito.

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Alerta: este cartaz é um delírio virtual e molhado captado no Solar Minhoto, em Lisboa. Não corram a comprar bilhetes, por favor.

O festival do bitoque seria o ponta de lança de uma campanha internacional que começaria com a certificação do prato. Este é o meu contributo para esse desiderato.

  1. O bife deve ser fresco e de alcatra.

Um bitoque não deve levar carne do lombo ou da vazia ou maturada. Isso são invenções de rico e o bitoque é pobre. A alcatra, por ter nervo e gordura q.b, pelo sabor, é o meu corte favorito, mas há partes do pojadouro que cumprem a função, mesmo que tenham de ser marteladas. Outra coisa essencial é que a carne seja fresca. A carne fresca é a que tem mais sangue e vamos precisar dele para um componente essencial: o molho.

  1. O molho deve ter sangue, gordura e alho, muito alho.

A dúvida começa na gordura: azeite, margarina, banha, óleo? Admite-se um cocktail de banha e azeite ou de azeite e óleo ou de óleo e banha. Mostarda, enfim, depende da mostarda e da quantidade; um golpe de vinagre no fim também pode ser uma alternativa. De resto, o que é mesmo essencial é que o sangue do bife se emulsione no molho, que haja louro, um pequeno golpe de vinho branco ou de uma bebida espirituosa (uísque, Madeira, Porto — pouco) e alho, muito alho.

  1. O alho tem de ser laminado e caramelizado

O alho é danado. Não só porque frequentemente está velho e bafiento, como porque variedades diferentes comportam-se de maneira diferente no fogo. O alho laminado espalha mais rapidamente o sabor. Se frito no tempo certo, caramelizado e ligeiramente amolecido pelo sangue do bife, vai também ficar incrível para trincar.

  1. O ovo deve ser um bicho feio e encarquilhado

Ovos estrelados lisinhos, branquinhos, com a gema reluzente, toda empinada, só servem para mupi da McDonald’s. A clara tem de ter bolhas grandes e douradas onde se aloje o molho e os alhos e a gema do ovo deve sucumbir à ponta da faca e escorrer langorosa pelo bife. No fim, é importante que se derramem duas ou três colheres do molho por cima do ovo, com o alho laminado à mistura.

  1. As batatas têm de ser palitos descascados à mão

Esqueçam as rodelas, esqueçam a batata doce, esqueçam batatas congeladas. A batata do bitoque é o palito clássico português, cortado de manhã à faca para dentro de um alguidar com água. Prefiro palitos grossos, porque gosto deles estaladiços por fora mas com o miolo farinhento, para empapar o molho e a gema.

  1. Os acompanhamentos são supérfluos

É tudo acessório, a meu ver. Há quem defenda, como o meu amigo bitoqueiro Luís Leal Miranda, homem com obra escrita nesta matéria, que o arroz é importante e que a batata não o inviabiliza. Na verdade, se o bitoque for servido em prato alto de barro, tudo junto, tudo ao molho, o arroz fica deliciosamente empapado. Uma coisa menos supérflua são os picles de couve-flor. A gordura da molhanga pode ser cortada de várias formas, mas os picles são o meu ácido preferido.

15 comments on “Os 6 mandamentos do bitoque

  1. Nunca fui um fã de bitoque. Sempre me pareceu a escolha dos cobardes. Como o bacalhau à Brás. O refúgio de quem olha para um menu cheio de opções e escolhe encagufadamente a que menos hipótese oferece de levar o paladar até sítios surpreendentes (para mal… mas também para bem). Fica-se satisfeito, mas também não se aprende nada…

    No entanto, não pude deixar de salivar ao ler o teu texto, Ricardo. E a verdade é esta: se for bem feito, até um bitoque pode ser uma delícia. Tem é de ser bem feito. Seja como for, vai ser difícil não pedir um hoje ao almoço.

    Um abraço gurmê!

  2. Carlos Duarte Mendes

    Epá… Pois. Agora fica-se a salivar com a perspectiva não só do certame, como de uma lista onde comer os melhores bitoques em Lisboa. O almoço, esse, já está escolhido!

  3. Belíssimo texto que me deixou a marinar um bitoque desde as 11 da manhã, hora pouco comum para um apetite deste calíbre.
    Sou obrigado a mencionar o tasco bem tuga da rua da Graça com a singular designação “o Cardoso” que respeita o senhor seu proprietário.
    Ora o Cardoso, à boa maneira tuga, faz de uma toalha de mesa um grande Mupi temporário, como se fosse uma Facebook story.
    Durante a minha vivência no bairro fui assíduo ao local e à família que fazia a célebre “comida da mamā”. Um dos pratos magníficos era o Bitok, assim moderno e anglófono. tentei, inclusive com comensais amigos, apontar o erro mas nunca o consegui. E tenho certeza que ainda será Bitok.
    Vou-lhe regressar brevemente.
    Obrigado pela memória acordada.

    • Obrigado pelo teu comentário, João. A grafia “bitok” pode não ser moderna e anglófona. Curiosamente, essa era a grafia do bitok à russa, que os cozinheiros franceses dos czares terão inventado. Há quem defenda que esse bitok viajou depois para Espanha, na forma de uns bifes raspados, e que podem ter sido os galegos que migraram para Lisboa a trazer o nome, dando origem ao nosso bitoque. Ando há muito para visitar o Cardoso e este pode ser um óptimo pretexto. Abraço

      • sobpressaodigital

        Será até interessante combinarmos uma bitokada!

    • Gabriela Varino

      Grande Cardoso e a senhora sua esposa! E não esquecer as caracoletas… fantásticas!!

      • sobpressaodigital

        uohuoh! Os melhores caracóis da cidade, lê-se muito bem .)

    • sobpressaodigital

      Não sei porquê, de João Gata passei a sobpressão digital, um alias anterior à passagem do milénio…

  4. Só para chatear, prefiro o prego.
    Não pelo sabor, mas porque me pesa menos a consciência (tem menos gordura…).
    Talvez nem faça sentido comparar o bitoque com o prego, apesar de ambos terem carne e serem comida para gente, digamos, despachada.
    Belo texto, Felner.
    Cá tens um leitor que não sabe cozinhar nem um prego mal feito, muito menos um bitoque de qualidade.

  5. Eduardo Egrejas

    Na região Oeste onde é para ti o melhor bitoque?

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