A primeira vez que lá fui tinham morto o Ângelo. O miúdo de 17 anos, cabo-verdiano, fora alvejado por um polícia, numa perseguição de carro. O bairro estava em alvoroço. Na altura, escrevi uma reportagem para o Público que procurava mostrar o bairro por dentro, depois das câmaras de televisão terem acabado os directos dos tumultos .
Estávamos em 2001. Mas, apesar do anúncio de medidas pós-incidentes, patrocinadas pelo Estado, a história haveria de se repetir. Polícias contra ladrões, sempre o jogo do rato e do gato. Mais vítimas, mais governantes com palavras bonitas, mais medidas avulsas.
Na semana passada, voltei para almoçar n’O Coqueiro, a convite do Carlos Lopes, fotógrafo, camarada, grande conhecedor profundo da topografia e de tudo. Vi menos traficantes de droga na Rua Principal, mas também menos cabeleireiros, menos comércio, só uma vendedora de rua e a banca de doces “arranhas”, feitos de coco e açúcar.
O snack-bar O Coqueiro, todavia, mantinha-se no mesmo sítio. A especialidade, antes como agora, é a cachupa, e antes como agora é Maria Patriarca, a cozinheira, quem sabe da poda.
“Não faço refogado, uso uns condimentos meus. A panela está ao lume deste as sete da manhã”.
Eram 13.00 e chegavam à mesa umas tigelas fumegantes. A cachupa vinha com milho branco (essencial, com a sua consistência ligeiramente dura e elástica), feijão catarino, feijão pedra, entrecosto e couve. À parte, numa travessa, mais couves, batata doce e chouriço corrente. Para sobremesa, doce de papaia com queijo fresco e mousse de manga.
No final do almoço, atravessámos o bairro e pude confirmar a mesma serenidade de outras visitas. Durante o dia, a Cova não passa de um monte sossegado, quase bucólico. Passámos por uma anoneira, uns metros à frente uma abacateira carregada de frutos, mulheres transportando água. Só as janelas gradeadas das casas indiciavam um submundo implacável. As vítimas? Os próprios moradores do bairro.
Godelieve Meersschaert, mais conhecida por Lieve, de origem belga, a extraordinária presidente da associação Moinho da Juventude, estava no sítio do costume, com a energia de sempre. “Ainda há muito trabalho pela frente. Há muito a fazer”, atirou, guiando-nos pela biblioteca da associação, onde também funciona a creche.
Tinha feito com ela o mesmo périplo, há uns anos, e ficara com a mesma sensação. Há uma centelha de esperança no sorriso destas crianças, nas mulheres a aprenderem a ler na casa ao lado, na persistência de Lieve, há mais de 30 anos ali a viver, ali a trabalhar por uma comunidade, longe do seu país, longe de tanta coisa.
Mas essa centelha, 16 anos depois, continua a ser uma centelha. A Cova da Moura não deixou de ser um gueto. E isso, apesar da cachupa, é triste.
Boa dica. Gosto muito de cachupa. Uma amiga, guineenese, infelizmente já falecida, fazia-a muito bem,
Comi uma excelente, já há anos, feita pela então sogra do Gemelli, no primeiro Peixe em Lisboa. Escapulimo-nos para as traseiras dos balcões de comes e ala, aí vai disto. O Duarte Calvão torceu um pé a descer umas mini escadas no regresso da incursão cachupeira.