Pratos Restaurantes

Noodles chineses do 1º Andar

Quando trabalhava nos Restauradores, tinha de ir ao Martim Moniz para conseguir almoçar por menos de 10 euros. No eixo Avenida – Chiado ou se pagava mais ou se comia trampa.

Numa dessas incursões, olhei para a fachada do edifício do supermercado Hua Ta Li e vi uns cartazes na janela do 1º Andar, que vagamente anunciavam comida. Subi e hesitei. Do lado direito residia um cabeleireiro chinês cheio de adolescentes saídos do Dragon Ball; do lado esquerdo, uma porta sem sinalética.

Como acontece com outros restaurantes clandestinos da zona, o sítio era um apartamento reconvertido. Havia uma primeira sala privada, onde estava um grupo barulhento e mais à frente a sala principal ligava com a cozinha.

Os stalkers de clandestinos — uma fauna diversificada que junta hispsters, erasmus e outras pessoas que tomam banho dia sim dia não — não tinham ainda descoberto o restaurante. Debruçados sobre grandes tigelas fumegantes, só chineses da burguesia do Martim Moniz, todos alinhados do mesmo lado das mesas, as cabeças ora enfiadas no caldo ora espreitando o televisor.

Como eles, habituei-me àquilo. Durante semanas, meses, o 1º Andar tornou-se a minha cantina, um sítio onde se comiam os melhores noodles chineses da cidade, ao mesmo tempo a que se assistia a transmissões asiáticas e radicais dos jogos sem fronteiras.

De início não foi fácil. A atender estava um brasileiro grande que era vítima de bulling por parte de um cozinheiro chinês ainda maior. O chinês punha o brasileiro a estender a massa fresca dos noodles e forçava-o a servir às mesas e a limpar as casas de banho.

Esta discriminação estendia-se à clientela. Eu e o meu amigo Rui Pita, enorme designer gráfico da Time Out, o homem mais rápido do mundo a recortar e paginar pratos de comida, fomos repetidamente vítimas de racismo. Esperávamos infinitamente pelos nossos pedidos e chegava um chinês, sentava-se, e daí a dois minutos tinha o prato à frente.

Nós protestávamos, o brasileiro lamentava, mas a comunicação com as altas instâncias era difícil. O cozinheiro não percebia ou fazia que não percebia: barafustava, depois ria-se, depois voltava a servir antes de nós todos os chineses que estivessem na sala. Foi assim sempre e nós nunca desistimos de lá ir: por uma sopa daquelas podiam-nos pôr trinta mil chineses a sorver noodles ao ouvido e a espetarem-nos pauzinhos nos olhos. Aguentávamos tudo.

Este ano, deixei praticamente de almoçar na Baixa, mas regressei ao 1º Andar na semana passada, para matar saudades. Foi tão bom outra vez. O sítio está mais compostinho e parece quase um restaurante. Agora já não há só a carta em chinês e as pessoas até podem ver fotos dos pratos, que são muitos e variados.

Para mim, todavia, nada continua a bater a sopa de massa com entrecosto. O caldo tem sabor a ossos cozidos durante horas com gengibre e alho e outras coisas aromáticas. A couve chinesa é crocante e vem acompanhada de cebolo. O entrecosto é uma peça decadente de carne assada que se pode comer à colher. A massa de trigo é preparada na casa e tem um bom equilíbrio entre firmeza e elasticidade.

Para quem já ouviu falar de ramen, trata-se de uma versão suja, bruta, barata. E às vezes é mesmo isso que queremos.

Sorvam muito.

Preço 6€ | Restaurante 1º Andar | Martim Moniz (Lisboa)

 

2 comments on “Noodles chineses do 1º Andar

  1. Ana Músico

    heheheh o que me ri!!! muito bom Ricardo, adoro os teus textos!!!! Beijinhos ana

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