A dada altura, o chef Guilherme Spalk empunha uma caneca das Caldas. Cada um dos dez clientes em redor do balcão estranha. Não por causa do utensílio fálico, típico das Caldas — tinham visto vários nos últimos 30 minutos — mas porque lá dentro tem “leitinho”. E “leitinho“, no final de uma refeição de alta-cozinha, parece despropositado.
Tudo brincadeira, mais uma malandrice da peça-jantar Alice no País dos Bordéis, em cena na Pensão Amor. O líquido é, afinal, um pequeno shot de leite de coco, rum e agave, excelente para nos fazer descer aos doces, apenas mais um episódio de uma peça erótico-porno-gourmet que acabaria por ser também, para minha surpresa, uma das melhores refeições do ano.
Vamos ao início. Tudo começou com um monólogo de uma antiga prostituta do Cais do Sodré, protagonizada pelo actor Francisco Beatriz, com texto de Roger Mor, sem pruridos de linguagem.
A história passa-se num piso secreto da Pensão Amor, entalado entre o primeiro e o segundo andar, em 1962, quando por ali entravam marinheiros mas também gente do regime de Salazar. Os espectadores/comensais são meretrizes candidatas a entrar no bordel, cuja apresentação terminará com uma ceia. Ao fim de meia hora de monólogo (bem segurado, mas talvez demasiado longo), Alice dá a conhecer o restaurante do bordel e pede-lhes para “fecharem as pernas e abrirem a boca“.
Nesta altura, as “meretrizes” passam para a sala mais misteriosa do bordel, um pequeno balcão de mármore numa sala mínima e escura. Alice despede-se então e toda a gente fica nas mãos de Guilherme Spalks e da sua equipa.
A encenação mantém-se. O jovem chef (ex-Bonsai, ex-Sea Me, ex-Bocca) encarna bem o espírito e é forte na comunicação marota. O imaginário do bordel e do sexo está presente na linguagem e no menu, mas isso não força a nota, apenas cria um tema, uma história que aproxima as pessoas, faz rir e torna o ambiente num fine dining distendido.
Fosse só isso e já não estava mal. Mas o que acontece é que a refeição foi mesmo uma das melhores que fiz no último ano, sendo que passei por uns quantos Michelin.
A servir-nos três cozinheiros e um escanção num bate-boca constante, como se fosse um bar de bairro onde todos se conhecem. Quem tinha vergonha já a perdera na peça de teatro (muito interactiva, com direito a vídeo porno vintage e mostra de dildos antigos). A única coisa que fazia corar era o espumante Blanc des Blancs de Luís Pato, mais os brancos (Automático e Mau Feitio) servidos a bom ritmo.
A carta tem uns 10 pratos e pratinhos e eu não vou esquecer quatro ou cinco deles. Absolutamente irrepreensíveis as miniaturas de foie gras, ceviche e churro. O linguado com ostra e esparregado é outra combinação fortíssima de mar e terra. Genial o interlúdio entre o peixe e a carne, com um caldo de legumes picante suavíssimo a funcionar como limpa palato. Depois, não houve cá carnes maturadas, nem outros clichés da alta cozinha. Spalk surpreendeu outra vez: faisão com amêndoa torrada, creme de bolbo de aipo e alperce, um prato absolutamente fabuloso, com execução de elevada dificuldade técnica.
A cozinha de Spalk é sempre deliciosa (eventualmente com um ou outro elemento a mais, num ou noutro prato, mas sem chatear), de matriz europeia com um fundo subtil japonês, temperaturas e pontos de cozedura perfeitos e produtos de topo. Ou seja, alta cozinha sem a cagança protocolar do costume (não se perde tempo a provar o vinho, por exemplo, o que faz uma diferença incrível no ritmo da refeição).
No final, os 70 euros do bilhete (bebidas incluídas) são uma bagatela, o melhor negócio gastronómico que vão conseguir na cidade neste momento.
Chegados aqui é preciso que se perceba que Lisboa não ganhou um restaurante. O espectáculo tem os dias contados: em Novembro acaba-se. Do que não há dúvidas é que temos chef. Guilherme Spalk demonstrou ter cultura, técnica e cabeça para se tornar num caso sério.
Sem padrinhos. Sem estrelas Michelin. Sem restaurante.
Aviso: O Homem que Comia Tudo foi convidado a assistir a este espectáculo, como jornalista e blogger, não lhe tendo por isso sido debitada a conta, circunstância que poderá ter tornado o seu espírito mais benevolente na escrita deste texto. Do que pôde observar, todavia, não foi alvo de qualquer tratamento diferenciado relativamente aos outros comensais.
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